Eu sei que já passamos a marca do meio do ano para eu estar a chamar este dois mil e vinte e dois de novo. Mas isto é como o Natal e por isso é quando eu quiser. Decidi que ia ser agora porque a minha vida, neste último mês, passou do oito ao oitenta.
Ainda me lembro quando escrevi aqui, em dois mil e dezanove, que tinha conseguido o meu primeiro trabalho, na área que sempre quis. Expliquei o meu percurso até lá, aquilo que me fez escolher entre os tantos alguns que tinha em cima da mesa e o quão feliz estava.
A LER: Quando se fecha uma porta, outra vai abrir
Se esperava, três anos depois estar a escrever isto prestes a aceitar um novo desafio profissional? Não. Não estava iludida ao ponto de acreditar que ia trabalhar ali para sempre (porque não passa, pelos meus planos profissionais futuros, isso acontecer), mas pensava que ia lá ficar mais do que três anos.
Não é segredo nenhum — até porque sempre escrevi sobre enfermagem real aqui neste cantinho da internet — que ser enfermeira não é pêra-doce por vários motivos que poderia enumerar mas não ia servir de nada.
Sabia pouco no que me ia meter quando saí da faculdade cheia de idealismos e ideias. A parte boa é que três anos depois, quase nada mudou relativamente àquilo que eu acho que enfermagem tem de ser. Mudei eu, para melhor. E comecei a perceber que preciso de estar bem para conseguir fazer o bem a quem está sob os meus cuidados. No sítio onde estava, já não estava bem.
O problema de um local de trabalho abusivo é o mesmo que uma relação tóxica: os motivos para ficarmos são nossos e até querermos quebrar o ciclo tentamos sempre justificar aquilo que acontece como coisas naturais e expectáveis de acontecer. Aceitamos o abuso, o pedido de horas extra, o incomodar nos dias de folga, o pedir para voltar de férias mais cedo, o ter de cobrir turnos de colegas que vão embora, etc… como se fosse normal. Não é.
A equipa de trabalho não tem de resolver os problemas de recursos humanos. Há pessoas pagas — e bem pagas — para isso. No entanto o assédio era tanto, que ficava sempre de peso na consciência por não fazer mais do que aquilo que já estava a fazer: ainda que implicasse trabalhar mais de 70-80 horas extra todos os meses para além do meu horário mensal normal. Para além de receber o mesmo ordenado depois de ter trabalhado essas horas todas, o tempo livre era passado numa ansiedade tal a pensar que me iam chamar para trabalhar. Sempre foi assim, mas antes era mais suave e passava mais despercebido.
(E lá estou eu a tentar justificar).
Não quero atirar para o ar que estava em burnout, mas os sinais estavam todos lá.
Uma pessoa arranja mecanismos de coping para lidar com estas coisas. Os meus eram gostar muito daquilo que faço (e acho que se nota) e da área onde trabalho (que foi a que sempre quis) e ter uma relação excelente com a minha equipa de trabalho. Foi a junção de isto tudo que me fez andar e aguentar. Mas eu sempre disse que não ia ser suficiente. E não foi. E sei perfeitamente o dia e a hora em que qualquer coisa dentro de mim quebrou e decidi que eu merecia mais que isto: mais tempo, mais respeito, mais descanso, mais ordenado, mais… só e simplesmente mais.
Tive a sorte de trabalhar verdadeiramente em equipa neste serviço que deixo daqui a uns dias. De ter recebido colo quando precisava, de ter dado colo quando me pediam, de discutir ideias, intervenções. De ser tratada como um elemento importante pelas minhas colegas enfermeiras e respectivas equipas médicas. De não ter medo de dar sugestões e propor soluções. De não ter tido médicos que nos achavam cidadãos de segunda e que respeitavam as nossas opiniões e observações porque éramos nós que passávamos horas com os utentes. Foram estas pessoas que tornaram a decisão de ir embora tão difícil. Mas sei que estão felizes por mim, porque ao longo destes 1039 dias e 5790 horas de trabalho foram vendo que a minha luz estava a apagar. Que o meu sorriso fácil estava cada vez mais difícil. Que a minha boa-disposição depois de tanta porrada e condicionamentos estava a desaparecer. E eu isso não permito. E eles também não.
Daqui a uns dias parto numa aventura nova: hospital novo, rotinas novas para aprender mas num serviço familiar e que sei, sem dúvida, ser aquilo que quero fazer nesta vida de elfo enfermeira e especializar-me cada vez mais. Não sei se vai ser melhor, mas diferente vai ser de certeza. E às vezes é só isso que precisamos. Que o brilho volte aos olhos. Que não me condicionem a ser aquilo que não sou e me façam sentir mal por ter sempre um sorriso na cara. Que oiçam aquilo que precisamos e que não se esqueçam que uma mão lava a outra. Que as pessoas merecem ser felizes no local onde trabalham.
Vou ter saudades do sítio que me deu estofo de enfermeira: das pessoas, das rotinas já conhecia, dos cantos à casa que já sabia de cor e dos nomes que não tinha de me concentrar para me lembrar. Espero que tenham saudades minhas também. Deixei muito de mim lá, mas trago muito de lá comigo também, e ainda bem.
CONTINUO A SER ENFERMEIRA DE OBSTETRÍCIA. VOU É ESPALHAR AS MINHAS PURPURINAS PARA OUTRO LADO✨
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