Se há coisa que sempre fiz no meu blog e nas minhas redes sociais foi partilhar pedaços reais da minha vida, sem paninhos quentes e sem necessidade de validação. Partilhei a minha luta de entrar na faculdade, partilhei os momentos bons que vieram disso, partilhei partes da minha vida boas – e menos boas –, falei sobre coisas que me incomodaram e que me deixaram feliz. Sempre fui o mais sincera possível, e sempre escrevi sem grandes pretensões.
Desde que começou esta situação toda da pandemia mundial, sempre fui aquela pessoa que mantinha uma atitude positiva e descontraída (porque não acredito na cultura do medo e porque acho que as pessoas têm de ser informadas e não intimidadas) e estive sempre disponível para responder a questões. Outra coisa, que também fiz, foi partilhar, como sempre, coisas que me aconteceram ao longo deste período.
Há uns tempos, numa das redes sociais ali ao lado, partilhei um episódio que me deixou chateada. Era o início da pandemia, os transportes públicos estavam reduzidos e as pessoas na rua também. Como sabem, vivo entre turnos da noite e, numa dessas noites, em que estava a ir para o trabalho… fui assediada, forte e feio no comboio. Fiquei tão nervosa que nem tive reacção. Essa foi a minha primeira experiência de coisas desagradáveis que me aconteceram durante o confinamento obrigatório.
Não partilhei todas porque nunca gostei de ver a vida de forma negativa mas, desde de Março, que não tem sido fácil. Desde de insultos, a falta de civismo e a tudo o mais que não queríamos que a sociedade fosse.
Há uns dias, a caminho do trabalho e de um turno duplo, passei por outro desses momentos e, naquele dia caiu-me mal, porque senti que fosse mais pessoal. Eu não tenho carro, por isso vou para o trabalho de transportes, acabando por andar algum tempo na rua. A passar um cruzamento um senhor, do alto do seu pedestal insulta-me (a coisa mais fofinha que ele me chamou foi filha da puta) por estar a andar na rua. Sem saber os meus motivos (não que ele tenha alguma coisa a ver), sem saber quem eu era (também não precisava) e sem perceber naquilo que se podia estar a meter. Mandou-me ir para casa. Chamou-me irresponsável. Disse que era por pessoas como eu que estávamos como estávamos. Mas eu segui o meu caminho, porque tinha coisas mais importantes que fazer.
Na altura, achei um bocadinho irónico este episódio. Uma pessoa que está na rua, dizer a outra que também está, que é irresponsável e que é por causa dela que o País está assim mas, aquilo que mais me irritou foi a ofensa fácil. O bater onde dói. O meter o dedo na ferida dos insultos.
Não é novidade nenhuma que o COVID-19 tirou muita coisa a muita gente e, no meio disto tudo, sinto-me uma privilegiada por ter conseguido passar por isto relativamente tranquila: dormi menos, ganhei alergias na cara e senti-me um tanto de paranóica como de limitada mas, no geral, scot free. Mas, o que não me tirou, foi a empatia pelos outros.
A LER: Enfermeira em tempos de COVID-19
Como disse no início (e foi por isso que esta introdução foi tão grande) partilhei nas minhas redes sociais este episódio. E a coisa explodiu. Em 48h tive a experiência do que é viver sobre o escrutínio dos outros nas redes sociais e, posso garantir, que não é a melhor coisa do Mundo.
OS PROBLEMAS
Nessa tal rede social, partilhei uma fotografia minha, sem a minha identificação profissional, sem meter em risco informação pessoal das pessoas internadas, com máscara na cara, a responder, de forma sarcástica (e como sempre faço) ao senhor que me ofendeu, onde dizia: “E ao senhor que me chamou filha da puta por estar na rua, na minha vida, a ir para o trabalho: beijinhos e falamos no fim do meu turno de 16h”. E pronto, abriu-se a porta de Pandora.
Recebi imenso amor e, a essas pessoas, estou eternamente grata. Mas, ser humano que se preze foca-se no mau. Porque quando nos sentimos atacados ou em perigo o nosso instinto de fight or flight entra em acção. E enquanto uns fogem (e é válido), outros ficam e lutam (o que é válido também).
No geral tento ser tão neutra como a Suíça nestas coisas das redes sociais. Mas, desta vez, em vez do meu instinto ser de flight, foi de fight. Porque estou a ficar saturada.
Tive pessoas que me disseram: “olha esta estarola que enche a boca a dizer que é enfermeira mas em vez de ir atender pacientes preferiu tirar a fotografia para postar e mandar vir”, “belo trabalho, a tirar fotografias” e outras neste nível.
Meus amigos, se vocês forem fiscalizar toda a gente que tira fotografias no trabalho, por favo peçam um ordenado, que vai ser um trabalho a tempo inteiro. Ou criticaram também todas as fotografias que foram partilhadas por colegas meus de profissão para mostrarmos a quem quisesse ver aquilo que se passava? É que se sim… caramba. Folgo-vos a paciência. É que foram centenas de milhares.
E sim, toda a gente mexe no telemóvel durante as pausas no trabalho. É por isso que se chamam pausas. Fazemos o que queremos com elas. É tempo nosso, para desocupar a cabeça. Para esticar as pernas. Para lanchar, jantar ou almoçar (apesar de muitas vezes estarmos a ameaçar ir há duas horas e por algum motivo não fomos). Para jogar Candy Crush. Para contarmos piadas. Para sermos humanos e não máquinas.
Deus nos livre, termos pausas! Os enfermeiros têm de ser máquinas, robots sem sentimentos. Paus para toda a obra. Como se atrevem a ter necessidades básicas humanas? Selvagens. Uma cambada de selvagens.
Aos queridos que se mostrarem indignados por as pessoas terem direito a pausas no trabalho (trabalhem as horas que trabalhem) digam-me só qual navio de escravos é que vocês controlaram no século XV.
No entanto, e uma coisa que me irrita até ao limite, é questionarem o meu profissionalismo quando a) não trabalham comigo e b) publiquei uma fotografia. Nenhum utente ficou por ver. Por tratar. Por cuidar. Nunca fica. É sempre o bem-estar deles à frente do nosso. Ao fim de dezasseis horas quem precisava de cuidados era eu, mas segui firme, sempre bem disposta, com uma dor de costas que até hoje me assombra. E SIM! Digo que boca cheia que sou enfermeira porque me saiu do couro o esforço para o ser.
Metam, de uma vez por todas na cabeça, que uma pessoa não é só a sua profissão. Eu sou a Ana. Sou enfermeira. Mas sou também muitas mais coisas. E não há nada de errado com isso.
No meio desde grupo de insultos apareceu outros tantos que, dentro do género, diziam coisas como “não é por seres médica que não és filha da puta”. Muito bem, muito certo. Dou-vos alguma razão porque não me conhecem de lado nenhum. Mas eu também não vos conheço e não é por isso que vos ofendo. Estão a entender a lógica?
A CONCLUSÃO
É importante percebermos que somos todos humanos. Todos temos o nosso lugar na sociedade e ninguém é mais que o outro. O mínimo que se pede é respeito pelo próximo. Seja nas redes sociais ou nas ruas. Será isto efeito do isolamento? Deixámos de saber estar com o outros? Ou simplesmente é mais fácil ofender quando estamos protegidos atrás de um ecrã (mesmo que aconteça na rua com a mesma frequência)?
Só sei que dispenso falsas modéstias e falsos agradecimentos de quem enche a boca que aplaudiu os profissionais à varanda quando era bonito mas, no primeiro momento, mostra que aquilo que fez não é aquilo que sente. Prefiro que não me agradeçam e que me respeitem, do que me batam palmas e questionem o meu profissionalismo.
Aos restantes que são queridos e uma luzinha na vida dos outros: obrigada ❤️
Joana diz
Não entendo esta agressividade. Acho que é o medo a falar mais alto.
Ana, deixa lá. Como eu digo, o enfermeiro é sempre o saco de porrada. Hoje heróis, amanhã novamente uns grevistas egoístas.
Um beijinho.
Beatriz Ribeiro diz
Momentos de crise põem a descoberto a essência mais íntima das pessoas. Quem for boa pessoa irá desmontrá-lo, quem não for respeitador, irá ficar ainda mais a descoberto. Por isso, não acredito que a gente saia desta situação mais humanistas, solidários e afins… Vai se ver o melhor e o pior das pessoas. Força Ana!
Ana Garcês diz
Eu acho que o problema é meu que acredito sempre no melhor das pessoas porque trabalho intimamente com pessoas nas mais diversas fases de vida.
Se calhar sou idealista de mais!